DECISÃO:
Cuida-se de habeas corpus, com requerimento de liminar, impetrado por Arnaldo Malheiros Filho e outros em favor de ROBERTO LUIZ RIBEIRO HADDAD, contra decisão do Superior Tribunal de Justiça, que aceitou denúncia ação penal em face do paciente.
Os impetrantes esclarecem que o paciente é Desembargador Federal, membro do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e, nessa condição, juntamente com terceiros, foi objeto de operação policial consistente em interceptações telefônicas e busca e apreensão de objetos, as quais se deram em sua residência, em seu gabinete de trabalho e em oficina mecânica de propriedade de seu irmão, sob a acusação de participar da suposta venda de decisões judiciais.
Oferecida denúncia ao STJ - a qual dava o paciente como incurso nas sanções dos arts. 288, 357 e 321, parágrafo único, c/c. art. 70, todos do Código Penal, bem como do art. 16 da Lei nº 10.826/03 - esta foi parcialmente recebida, apenas no que toca ao suposto delito de posse de arma de fogo de uso proibido, referente ao último dispositivo penal mencionado.
O acórdão contra o qual se volta a presente impetração tem o seguinte teor: (Ação Penal nº 549-SP, 2006/0278698-0).
AÇÃO PENAL ORIGINÁRIA. COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA FIXADA EX VI ART. 105, INCISO I, ALÍNEA ‘A’, DA LEX FUNDAMENTALIS. (...). DESEMBARGADOR FEDERAL DENUNCIADO PELA PRÁTICA DOS DELITOS PREVISTOS NOS ARTS. 288, 321, PARÁGRAFO ÚNICO, E 357, TODOS DO CÓDIGO PENAL, E DO ART. 16 DA LEI Nº 10.826/2003. PRELIMINARES DE NULIDADE DA DECISÃO QUE DETERMINOU A INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA DAS CONVERSAS DO DENUNCIADO E DA MEDIDA DE BUSCA E APREENSÃO AFASTADAS. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA EM RELAÇÃO AOS DELITOS DE QUADRILHA OU BANDO, EXPLORAÇÃO DE PRESTÍGIO E ADVOCACIA ADMINISTRATIVA QUALIFICADA. RECEBIMENTO DA DENÚNCIA NA PARTE QUE É IMPUTADA A PRÁTICA DO CRIME DE POSSE OU PORTE ILEGAL DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO.(...).
IV - Verifica-se da simples leitura tanto da decisão que autorizou a quebra do sigilo telefônico de ROBERTO LUIZ RIBEIRO HADDAD, como da que possibilitou a prorrogação da medida, que a indispensável e suficiente fundamentação foi rigorosamente apresentada. De fato, todos os requisitos exigidos pela Lei nº 9.296/96 para a interceptação de conversas telefônicas foram devidamente delineados (v.g.: imprescindibilidade da medida, indicação de autoria ou participação em infração penal punida com pena de reclusão, a sua finalidade, etc.). As decisões apresentaram a necessária fundamentação com base em elementos que, naquela oportunidade, demonstravam a imperiosidade de sua adoção para elucidação dos fatos.
V- Conforme já decidido por esta Corte, a "busca e apreensão, como meio de prova admitido pelo Código de Processo Penal, deverá ser procedida quando houver fundadas razões autorizadoras a, dentre outros, colher qualquer elemento hábil a formar a convicção do Julgador. Não há qualquer ilegalidade na decisão que determinou a busca e apreensão, se esta foi proferida em observância ao Princípio do Livre Convencimento Motivado, visando a assegurar a convicção por meio da livre apreciação da prova." (RMS 18.061/SC, 5ª Turma, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 28/03/2005). Na hipótese, o cabimento da medida restou devidamente demonstrado, a partir do conteúdo das conversas interceptadas. Além disso, naquele momento, mostrava-se necessária uma melhor delimitação da participação de cada um dos supostos envolvidos nos ilícitos penais sob investigação. Por fim, a possibilidade de apreensão de coisas obtidas por meios criminosos, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso, objetos necessários à prova de infração e outros elementos de convicção justificavam, também, a necessidade de tal medida. Tudo isso, frise-se, restou satisfatoriamente demonstrado na decisão objurgada.
VI - Segundo já restou decidido por esta Corte, "Conforme o art. 68 da Lei Complementar 75/93, é atribuição da Procuradoria Regional da República a atuação em processos de competência originária dos Tribunais Regionais Federais" (HC 112.617/DF, 5ª Turma, de minha relatoria, DJe de 02/02/2009). Desta feita, "Os membros do Parquet de Segundo Grau não têm legitimidade para autuar em Tribunal Superior." (AgRg no Ag 614.771/RS, 5ª Turma, de minha relatoria, DJ de 30/05/2005). No caso, no entanto, não incide o disposto no destacado dispositivo legal. É que não se tem no mero acompanhamento de diligência por Procuradores-Regionais da República o mencionado ofício em órgãos jurisdicionais diferentes dos previstos para a categoria (na hipótese, perante esta Corte), a ponto de se exigir a autorização do Conselho Superior. De fato, a louvável medida levada a efeito em atendimento a Portaria nº 153 da Procuradoria-Geral da República datada de 18 de abril de 2007, subscrita pelo próprio Procurador-Geral da República, que no uso de suas atribuições constitucionais e legais designou diversos Procuradores-Regionais da República para, em conjunto com Subprocurador-Geral da República, acompanhar a referida diligência (fl. 6.715 - volume 25), denota a preocupação de que em sua efetivação fosse assegurada a observância de todas as garantias constitucionais dos investigados e a regularidade da medida.(...).
XLIV - Segundo consta, ainda, da imputação, no dia 20 de abril de 2007, durante a diligência de busca e apreensão realizada no endereço residencial de ROBERTO LUIZ RIBEIRO HADDAD verificou-se que este mantinha sob sua guarda, sem autorização e em desacordo com determinação legal e regulamentar, pois não dispunha de registro da arma no Comandado do Exército, conforme determina o art. 3º, parágrafo único, da Lei nº 10.826/2003, arma de fogo de uso restrito e respectiva munição, perfazendo, assim, a prática do delito de posse ilegal de arma de fogo de uso restrito.
XLV - O objeto apreendido na residência do acusado é, inegavelmente considerado, à luz da legislação que rege a matéria, uma arma de fogo, frise-se, de uso restrito, a despeito do calibre permitido. Com efeito, o art. 16, inciso IX, do Decreto nº 3.665/2000, que deu nova redação ao Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados (R - 105), estabelece de maneira bastante clara que são de uso restrito armas de fogo dissimuladas, conceituadas como tais os dispositivos com aparência de objetos inofensivos, mas que escondem uma arma, tais como bengalas-pistola, canetas-revólver e semelhantes. Tal fato, restou, inclusive, destacado no próprio laudo pericial realizado onde se lê "é arma dissimulada, portanto, de uso restrito." (fl. 1.276 do volume 5). De ofício do Comando do Exército se extrai que a referida caneta é considerada arma de fogo de calibre permitido. Nenhuma consideração a respeito de ser a arma de uso restrito ou permitido é feita, apenas se destaca que o calibre da arma é permitido e que ela se encontra cadastrada no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas - SIGMA, fazendo parte do seu acervo de colecionador. A Portaria nº 024 - Departamento de Material Bélico de 25 de outubro de 2000, que aprovou normas que regulam as atividades dos colecionadores de armas, munição, armamento pesado e viaturas militares, consigna em seu art. 5º que ao colecionador é facultado manter, em sua coleção, armas de uso restrito ou proibido, não dispensando, entretanto, o colecionador da exigência contida no art. 3º, parágrafo único, da Lei nº 10.826/2003 e no art. 2º, § 2º, do Decreto nº 5.123/2004, que regulamentou o denominado "Estatuto do Desarmamento", de promover o competente registro desta arma no Comando do Exército. Não há qualquer elemento nos autos que ateste que em 20 de abril de 2007 (data da apreensão) a referida arma encontrava-se devidamente registrada de acordo com determinação legal e regulamentar. Confrontando-se os dados constantes no documento juntado aos autos que atesta o registro de uma caneta-revólver de propriedade do denunciado com aqueles registrados no laudo-pericial, denota-se que, aparentemente, não se trata da caneta-revólver apreendida, pois a despeito de outras características coincidentes, o país de origem de uma e de outra não são os mesmos (EUA e TAIWAN, respectivamente). Além disso, conforme reiterada jurisprudência desta Corte (v.g.: HC 124.454/PR, 5ª Turma, Relª. Minª. Laurita Vaz, DJe de 03/08/2009 e REsp 1106933/PR, 5ª Turma, de minha relatoria, DJe de 17/08/2009) o reconhecimento da abolitio criminis temporária para o crime de posse de arma de fogo de uso restrito deve se restringir apenas ao período compreendido entre dezembro de 2003 e outubro de 2005, não se estendendo à arma apreendida em 20 de abril de 2007. Especificamente em relação ao crime de posse ilegal de arma de fogo de uso restrito esta Corte já destacou a irrelevância da arma estar ou não municiada (HC 79.264/PR, 5ª Turma, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 03/11/2008). Além do mais, se a posse de arma desmuniciada, mormente de uso restrito, fosse atípica, o registro seria totalmente desnecessário, tornando inócua a procura de até eventuais depósitos desse tipo de armamento evidentemente perigoso.(...).
XLIX - Denúncia oferecida em desfavor de ROBERTO LUIZ RIBEIRO HADDAD rejeitada, por falta de justa causa, no que concerne aos delitos de advocacia administrativa qualificada, exploração de prestígio e quadrilha, tudo isso, nos termos do art. 395, inciso II, do Código de Processo Penal c/c art. 6º da Lei nº 8.038/90 e recebida em relação ao delito de posse ilegal de arma de fogo de uso restrito. Pela natureza e por não guardar, o delito, vínculo direto com o exercício de sua função, o afastamento previsto no art. 29 da LOMAN não deve ser aplicado. (Denúncia na Ação Penal nº 549, Corte Especial, Relator Ministro Felix Fischer, julgado em 21 de outubro de 2009).
Em síntese, os impetrantes apontam a ilegalidade das escutas telefônicas, ante a inexistência de fundamento válido, redundando na ilicitude da prova obtida por derivação.
De outro lado, enfocam a nulidade da busca e apreensão, quer por serem decorrentes das ilegítimas escutas telefônicas, quer por absoluta ausência de fundamentação apta a excepcionar direito individual constitucionalmente garantido. Dizem que os atos persecutórios transformaram-se em verdadeira autorização de ‘devassa’ deferida à autoridade policial. Ainda quanto a esse ponto, mencionam a ilegalidade resultante do acompanhamento da busca e apreensão por procuradores-regionais da República, aos quais falece atribuição para atuar em feito de competência do STJ.
Referem também à atipicidade da posse de arma de fogo e de munição, tratando-se, na verdade, de uma ‘caneta-revólver’ e dois projéteis de calibre 22, sendo a arma mantida desmuniciada e apenas como objeto de decoração em estante da residência do paciente, contando com o devido registro de colecionador no Ministério da Defesa, o qual se estende sobre as demais peças de seu acervo, em número superior a cinquenta.
Esclarecem que a dúvida lançada no acórdão sobre a ‘caneta-revólver’ apreendida ser a mesma constante do rol de registro no Ministério da Defesa não se sustenta, devendo-se a erro do Exército Brasileiro, responsável pelo ato, na medida em que, por considerar o sistema de acionamento americano, presumiu tratar-se de arma de fabricação americana, quando, na verdade, foi fabricada em Taiwan.
Sucessivamente, sustentam a falta de dolo do paciente, que, ante o equívoco do próprio órgão administrativo, não teria a intenção de manter sob sua posse arma de uso restrito sem devida autorização.
No mais, asseveraram a ineficácia da arma para disparos, pois não estava municiada ou, tampouco, contava com munição disponível ao agente, vez que as duas balas apreendidas encontravam-se em outro cômodo da residência.
Finalmente, defendem que o suposto delito de posse de arma de fogo foi objeto de abolitio criminis, conforme prevê o art. 30 da Lei nº 10.826/03.
Requerem liminar que determine a suspensão do processo e final concessão de ordem voltada ao trancamento da ação.
Passo a decidir.
O caso em exame refere-se aos fatos trazidos a juízo por intermédio do Ministério Público Federal em conhecida operação da Polícia Federal nominada de ‘Operação Têmis’ e que tinha por objetivo - a princípio - apurar suposta corrupção no Judiciário Federal da 3ª Região.
Ao fim e ao cabo da apuração conduzida em sede de inquérito judicial junto ao Superior Tribunal de Justiça, a mencionada Corte Superior houve por bem instaurar ação penal contra o ora paciente exclusivamente por crime previsto no artigo 16, da Lei 10.826/2003, rejeitando a denúncia no que dizia respeito aos delitos de advocacia administrativa qualificada, exploração de prestígio e formação de quadrilha, com fundamento na ausência de justa causa para a instauração de processo criminal.
Portanto, não restou configurada a suposta corrupção, suspeita que justificou o deferimento de diversas medidas invasivas praticadas não apenas em relação ao paciente, mas a outros magistrados, além de buscas e apreensões executadas de forma espetaculosa na sede do Judiciário Federal da 3ª Região.
Ressalvado exame mais aprofundado, a ser feito em momento oportuno, quanto aos argumentos de nulidade das escutas telefônicas e da busca e apreensão encetadas em desfavor do paciente; abolitio criminis; atipicidade da posse de arma de fogo sem munição e a possível falta de dolo do agente -, vislumbro, de início, plausibilidade quanto à ausência de justa causa para ação penal com relação ao crime previsto no artigo 16, da Lei 10.826/2003.
Com efeito, o fundamento do acórdão questionado para a aceitação da denúncia assenta-se no fato de existir disparidade entre a ‘caneta-revólver’ apreendida na busca e apreensão e a descrição na lista de armas registradas em nome do paciente. Isto é, enquanto a caneta-revólver apreendida foi fabricada em Taiwan, o registro em nome do paciente permite-lhe a posse de uma caneta-revólver fabricada nos Estados Unidos da América.
No entanto, a descrição foi agora retificada em nova ‘RELAÇÃO DE ARMAS’ emitida pelo Ministério da Defesa em quatro de dezembro de 2009, passando a designar a origem correta.
De fato, os documentos de fls. 1.505/1.519 deixam claro que o paciente é reconhecido como colecionador de armas pelo Exército Brasileiro desde 1997, contando, em seu acervo, com exatamente 51 (cinquenta e uma) armas, conforme relação anexa ao certificado nº 14149, tais como metralhadoras, revólveres, pistolas, fuzis, carabinas e espingardas dos mais diversos calibres, modelos e origens.
Dessa lista de armas registradas no Ministério da Defesa, portanto de posse legítima, consta um revólver sob nº SIGMA 391562, sem marca, calibre 22, modelo caneta, 101 mm, fabricado em Taiwan.
Ou seja, às fls. 1517/1519, há documento expedido pelo MINISTÉRIO DA DEFESA, EXÉRCITO BRASILEIRO, COMANDO MILITAR DO SUDESTE, 2ª REGIÃO MILITAR, REGIÃO DAS BANDEIRAS, datado de 04 de dezembro de 2009, no qual a autoridade competente relaciona a arma objeto da questão ora tratada, retificando a procedência e atribuindo a ela a devida origem: TAIWAN.
Uma ligeira observação dos fatos indica que a pré-falada caneta-revólver encontrada na busca e apreensão realizada na casa do paciente parece ser a mesma submetida a registro, porém com erro material claro, no que diz respeito à procedência. Inexatidão esta, repita-se, já devidamente corrigida, pois o Ministério da Defesa aceitou o pedido de correção, acolhendo o argumento esboçado na inicial.
Certamente, admitida a plausibilidade do argumento utilizado pelo Tribunal impetrado, sobre não a correspondência entre a arma apreendida e o registro, não haveria razão para o órgão federal responsável - Ministério da Defesa - efetuar a correção.
De resto, como indica o presente pleito, é de todo plausível que haja apenas uma ‘caneta-revólver’, devidamente localizada, em tudo correspondendo à descrição constante do registro no Ministério da Defesa, afora o país de origem. Esse erro material, ao que parece, já se encontra retificado.
O STF, em diversos arestos, vem rejeitando a instauração da ação penal quando flagrante a ausência de justa causa para a formação da relação jurídica penal. Será sempre o caso de não instauração de feito criminal ou de trancamento daquele existente em sede de habeas corpus, quando o comportamento do réu ‘nem mesmo em tese constitui crime, ou quando, configurando uma ação penal, resulta de pura criação mental da acusação’(RE 150/393, Rel. Ministro Orozimbo Nonato).
A princípio, os elementos constantes destes autos indicam que a ‘caneta-revólver’, objeto da denúncia por suposto crime de porte ilegal de arma, encontra-se legalmente registrada.
Dessa forma, defiro a liminar, determinando a SUSPENSÃO DA AÇÃO PENAL 549/SP (2006/0278698-0), até final julgamento do mérito deste writ.
Solicitem-se informações.
Após, abra-se vista ao Procurador-Geral da República.
Publique-se.
Brasília, 28 de janeiro de 2010
Ministro GILMAR MENDES
Presidente (art. 13, VIII, RI-STF)
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