terça-feira, 3 de novembro de 2009

Origem fidalga das profissões jurídicas


Por Cássio Schubsky
Nos primeiros 30 anos da colonização portuguesa, não funcionou Justiça organizada no Brasil. E, como assinala o historiador Capistrano de Abreu, com a implantação do regime de capitanias hereditárias, os donatários passaram a ter jurisdição civil e criminal sobre fatos ocorridos em suas terras, sem agravo ou apelação para as cortes portuguesas, salvo em caso de pena capital (Capítulos de história colonial, São Paulo, Ed. Itatiaia e Ed. da Universidade de São Paulo, 7ª edição, 1988, p. 80).

Capistrano bate na tecla do poder absoluto do rei, que valia para Portugal e passou a vigorar também para o Brasil colônia. “Como o papa, cabeça da sociedade religiosa, o rei tornara-se o sujeito jurídico da sociedade civil: na qualidade de senhor absoluto, seus poderes não admitiam fronteiras definíveis (...), juízes e tribunais eram delegações do trono”. Vale observar que instância superior da Justiça na colônia é instituída apenas com a implantação do Tribunal da Relação do Estado do Brasil, em 1609, na Bahia, como veremos oportunamente.

Primórdios da organização jurídica

Em 1548, é instituído o Governo Geral da colônia, uma vez que a descentralização imposta pelo regime das capitanias ameaçava a integridade da nova possessão de Portugal na América e, portanto, organizar a administração e a Justiça locais tornara-se imperativo. O primeiro regimento da organização administrativa e judiciária, de 17 de dezembro, é dirigido ao provedor-mor da Fazenda do Brasil, Antonio Cardoso de Barros. É de se notar que a Justiça, assim como a administração fazendária, estruturava-se com vistas à proteção e ampliação dos bens reais.

Os poderes do grupo de funcionários da Justiça indicados pelo rei iam, paulatinamente, crescendo. “A montagem de uma estrutura judicial na Colônia teve como tendência a constante ampliação dos poderes concedidos aos funcionários mais diretamente ligados à Coroa”, conforme registra o livro Fiscais e meirinhos – a Administração no Brasil Colonial (Graça Salgado coord., Rio de Janeiro, Arquivo Nacional e Editora Nova Fronteira, 2ª edição, 1985, p. 73).

Eis aí, já em fase de montagem, aquilo que autores como Sérgio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro chamam de estamento, um agrupamento fidalgo que vai se constituindo gradativamente e amealhando poder e prestígio, ao longo de todo o período colonial, atravessando o Império, até chegar à fase republicana. Haverá quem diga que, ainda hoje, uma casta incrustada no aparelho de Estado constitui o estamento, com poderes irrefreáveis. Exemplos não faltam, a começar do poder de mando de certos personagens políticos no âmbito regional (os coronéis) ou mesmo no Congresso Nacional.

Naturalmente, àquela altura dos acontecimentos, no primeiro século da dominação portuguesa, não havia distinção clara entre atribuições administrativas, legislativas e judiciárias. Afinal, a separação de poderes — Legislativo, Executivo e Judiciário — é uma formulação de Montesquieu, que remonta ao século XVIII. O historiador Caio Prado Júnior afirma, também, que, no período colonial, havia uma falta de clareza nas instâncias judiciárias e administrativas, com superposição de jurisdição e circunscrição, o que gerava permanentes conflitos de competência (Formação do Brasil Contemporâneo, São Paulo, Publifolha e Editora Brasiliense, 2000, p. 314). Temos, assim, outro aspecto em que nossa tradição é antiga, como se pode observar, já que o Executivo, desde então, detinha poderes demasiados, em detrimento dos outros poderes. Herança avoenga!

Feita essa ressalva, pode-se compreender os rudimentos da estrutura inicial da Justiça colonial brasileira, a partir da implantação do governo geral, em que despontam as seguintes figuras: o ouvidor-mor, que era a autoridade máxima da Justiça, que se subordinava administrativamente apenas ao governador geral; os juízes ordinários; os meirinhos; os juízes de vintena; e os solicitadores, entre outros.


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