domingo, 26 de setembro de 2010

Evolução das formas familiares

O conceito de família representa a plurivalência semântica, que é um fenômeno normal do vocabulário jurídico, ou seja, vários juristas, de diferentes épocas e lugares, apresentaram diferentes definições sobre família. Com o passar do tempo, sempre se desatualizavam. No Brasil, até a idéia de família expressa pelo atemporal Clóvis Beviláqua (1976) não se apresenta compatível com a realidade. Afirma o civilista que a família "É o conjunto de pessoas ligadas pelo vínculo de consangüinidade, cuja eficácia se entende, ora mais larga, ora mais restritamente, segundo as várias legislações. Outras vezes porém, designa-se, por família, somente “os cônjuges e a respectiva progênie", esse conceito, apegado à consangüinidade, não tem respaldo na realidade atual.

Durante séculos, a família fora um organismo extenso e hierarquizado. Em terra brasilis, esse modelo é bem ilustrado por Gilberto Freire (2004), em sua obra Casa Grande & Senzala, ao apresentar a família patriarcal. A família brasileira apresentava um caráter nitidamente extenso, submetendo-se seus membros à autoridade soberana do pai. Em torno dele, girava toda a vida familiar. O patriarca constituía o centro de gravidade de seus domínios e das pessoas que os habitavam. (FREYRE, 2004)

Antes de chegarmos na família monogâmica, formas mais antigas existiram, como a família consangüínea, a família punaluana, a família sindiásmica ou de casal e a família patriarcal. (MORGAN, 1970:56-57).

O antigo Código Civil brasileiro (Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916), apesar de sua qualidade técnica, foi elaborado ainda sob a influência do individualismo que comungava com o modelo de família patriarcal. Dessa forma, para o Direito, o conceito de família esteve sempre ligado a dois elementos fundamentais: consangüinidade e casamento formal e solene.

No entanto, a partir da segunda metade do século XIX, a família patriarcal foi se esvaecendo. O processo de urbanização acelerada, os movimentos de emancipação das mulheres e dos jovens, a industrialização e as revoluções tecnológicas, as profundas modificações econômicas e sociais ocorridas na realidade brasileira e as imensas transformações comportamentais havidas puseram fim à instituição familiar nos moldes patriarcais, para surgir uma instituição organizada com base no modelo nuclear, restrita a um número reduzido de pessoas. A família extensa foi eliminada pela família nuclear, especialmente nas grandes cidades do País. Além disso, difundiram-se novos arranjos familiares, desvinculados da união legal.

Com o advento da Constituição Federal de 1988, sensível à nova realidade, a proteção assegurada ao casamento, foi estendida à família. A CR/88 trouxe o conceito de "entidade familiar (art. 226, §§3º e 4º); instituiu novas regras para o instituto do divórcio (art. 226, §6º); apregoou a equiparação dos cônjuges em direitos e deveres (art. 226, §5º); previu o planejamento familiar (art. 226, §7º) e a assistência à família (art. 226, §8º), além de instituir a absoluta igualdade entre os filhos. Trouxe, ainda, um rol exemplificativo de entidades familiares, quais sejam, a instituída pelo casamento, pela união estável e a família monoparental.

Todavia, o casamento não deixou de ser a forma clássica para se constituir família. Logicamente, não é, atualmente, a única forma de vida familiar. Acerca da primazia do casamento na geração de relações familiares, apregoa Caio Mário da Silva Pereira (2004:24):

"É o casamento que gera as relações familiares originariamente. Certo é que existe fora do casamento, produzindo conseqüências previstas e reguladas no Direito de Família. Mas, além de ocuparem plano secundário, e ostentarem menor importância social, não perdem de vista as relações advindas do casamento, que copiam e imitam, embora a contrastem freqüentemente. A preeminência do casamento emana substancialmente de que originam dele as relações havidas do casamento, como a determinação dos estados regulares e paragonais que, sem excluírem outros, são os que a sociedade primordialmente considera, muito embora, a Constituição de 1988 tenha proibido quaisquer designações discriminatórias (art. 227, §6º)".

Por outro lado, o movimento de mulheres e a disseminação dos métodos contraceptivos concretizaram o que Juliet Mitchell (1972, 263/264) afirmou sobre a conquista da pílula anticoncepcional: "libertará as experiências sexuais das mulheres de muitas ansiedades e inibições que sempre as afligiram. Romperá definitivamente com aquela complementaridade tradicionalmente necessária entre sexualidade e procriação". Associados aos resultados da evolução da engenharia genética permitiram o rompimento do paradigma: casamento, sexo e procriação.

Com todos esses avanços, a realidade nos mostra outra noção de família. Não significa que crise ou abolição da família, mas sim uma pluralidade de instituições, onde são reconhecidos outros arranjos familiares (MITCHELL, 1972: 273). O elemento da consangüinidade deixou de ser fundamental para a constituição da família, tanto que o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a existência da família substituta, visualizada no instituto da Adoção.

Roudinesco (2003:198) afirma que as novas formas de unidade familiar, que são consideradas ameaçadoras para alguns, não impedem que a família seja reivindicada como o único valor seguro ao qual ninguém quer renunciar. Afirma ainda, que todas as pesquisas sociológicas mostram que a família é amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições.

O que deve ser frisado é que a questão da família vai além de sua positivação nos ordenamentos jurídicos. Tanto é que ela sempre existiu e continuará existindo, desta ou daquela forma, em qualquer tempo ou espaço. O que muda são apenas as formas de sua constituição. Nas palavras de Roudinesco (2003:199) "a família do futuro deve ser mais uma vez reinventada". O que é confirmado por Pereira (2004: 30) ao afirmar que "A família está se transformando sob os nossos olhos".

A explicação para essas transformações nos é fornecida pelo psicanalista francês Jaques Lacan, que afirma ser a família um fenômeno cultural e não natural. Por isso é que ela se apresenta das mais variadas formas, de acordo com as diferentes culturas. Para ele, a família não se constitui apenas de um homem, uma mulher e filhos, ainda que casados solenemente. A família é, primordialmente, uma estruturação psíquica, onde cada um de seus membros ocupa um lugar definido. Lugar do pai, da mãe, dos filhos, sem, entretanto, estarem necessariamente ligados biologicamente ou por qualquer ato formal. (PEREIRA, 1995)

A opinião de que a família é um fenômeno natural é sedimentada no mundo jurídico. No entanto, novos doutrinadores, especialmente, estudiosos do Direito de Família, como Vilela (1979) e Pereira (1975), defendem ser a mesma um fenômeno cultural. Pereira, seguindo o entendimento de Lacan, explica que a família "não se constitui de um macho, de uma fêmea e de filhos. Ela é uma estruturação psíquica, onde cada membro tem um lugar definido. Para se ocupar o lugar do pai, da mãe ou do filho, não é necessário laço biológico" e, a decorrência desse passo para o simbólico, que só o homem deu, é que nos diferencia dos outros animais e que nos permite constituir uma família, ou melhor, compor uma estruturação familiar.

A estrutura familiar é algo complexo que precede o Direito e que este procura legislar no sentido de proteger esse instituto, que é célula básica da sociedade. A família é fonte de companheirismo e afeto, com valorização de cada membro, para permitir o desenvolvimento da personalidade de todos. É na família que se estrutura o sujeito e estabelecem-se as primeiras leis psíquicas. Quando estas se ausentam, faz-se necessária a lei jurídica para sobrevivência do próprio indivíduo e da sociedade.

A realidade demonstra que a unidade familiar não se resume apenas a casais heterossexuais, as uniões homoafetivas já galgaram o status de unidade familiar. A legislação apenas acompanha essa evolução para permitir que, na ausência de sustentação própria, o Estado intervenha para garantir a integridade física e psíquica dos membros de qualquer forma de família.
Fonte: Glória Regina

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